Os dois caminhos de Ciro Gomes
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O ano de 2018 foi um momento bastante atípico para a política brasileira. Apenas 3 anos após o colapso político de Dilma, os destinos do país estavam mais abertos do que nunca. A roda da fortuna parecia apontar para todos os lugares, e a conjuntura impulsionava uma profusão de candidatos.
Temer, um presidente com apoio na classe política, mas baixíssima aprovação popular, colocou o peso da máquina presidencial na candidatura frágil de Henrique Meirelles. O favorito, Lula, se viu impossibilitado de disputar as eleições daquele ano pela atuação da operação Lava Jato. O candidato natural do PSDB, Aécio Neves, que quase ganhou a eleição 4 anos antes, teve seu capital político triturado pelo mesmo fenômeno político-jurídico.
Nesse contexto, a política nacional se viu dominada por duas grandes disputas. A primeira delas se dava entre petismo e antipetismo. O modelo econômico petista, que dominou a política nacional por 13 anos, ainda angariava a simpatia de amplos setores da população, por conta dos programas sociais e do bem estar econômico vividos no período Lula, resultado de um boom internacional das commodities.
Em oposição a isso surgiu um forte antipetismo. Os sinais de esgotamento das bases econômicas do modelo petista; os graves indícios de corrupção revelados pela Lava Jato; e a ascensão do discurso identitário na retórica de esquerda foram elementos que reuniram uma ampla oposição ao partido, tanto nas classes mais altas quanto nas classes populares.
A segunda grande disputa se dava entre o posicionamento de sistema e o antissistema. De um lado estava o establishment político, acadêmico, midiático e partidário, o que na linguagem popular costuma chamar-se de sistema. Profundamente abalado após a insurreição popular de 2013 e a presidência fraca de Dilma, esse establishment teve pouco tempo de reorganização e sossego sob a direção da dupla Temer-Maia.
De outro lado estavam as forças antissistema. Mais difusas, elas eram alimentadas por um misto entre os efeitos práticos da decadência econômica e um forte sentimento antipolítica gerado a partir das denúncias generalizadas de corrupção. Embora desorganizada, a massa de indignados, erguida em 2013 e alimentada nos anos posteriores, tinha como desejo mudar profundamente o sistema político e econômico do país.
Da tensão entre essas duas grandes disputas as candidaturas foram se posicionando no tabuleiro. Alguns candidatos tentaram de forma retardatária um discurso pós-PT, como Marina Silva, de viés mais antissistema, e Henrique Meirelles, com discurso mais pró-sistema. Outros tentaram o antipetismo, como Álvaro Dias, defensor da Lava Jato, e Geraldo Alckmin, candidato do establishment paulista e empresarial do país.
Tirando o candidato do PT, Fernando Haddad, dois personagens políticos surgiram com força significativa: Jair Bolsonaro e Ciro Gomes. Bolsonaro foi ao segundo turno e terminou ganhando as eleições. Ciro terminou em terceiro lugar, angariando votos de todos os demais candidatos ao centro que não queriam nem o PT e nem o radicalismo bolsonarista.
Bolsonaro ganhou porque foi o candidato que se posicionou de forma mais clara possível nas duas questões centrais. Na disputa petismo x antipetismo, ele se posicionou como um antipetista radical, tanto econômica quanto moralmente. Na disputa entre sistema e antissistema, ele se posicionou como o porta-voz dos indignados, bradando virulentamente contra a corrupção, o centrão e “tudo que estava ali”.
Ciro ganhou expressão devido a um discurso contundente, que dialogava com o sentimento antissistema da população, mas que tinha conteúdo menos agressivo do que o de Jair Bolsonaro. Na disputa entre petismo e antipetismo, porém, Ciro não se posicionou de forma clara, e isso lhe impôs um custo eleitoral elevado.
Isto ocorreu primeiramente, por história. Ciro, ex-ministro de Lula, foi a liderança política que mais vigorosamente falou contra o impeachment de Dilma, e também foi aquele que mais duramente falou contra as fragilidades jurídicas da Operação Lava Jato, atacando inclusive Sérgio Moro, seu principal símbolo e líder político, até então inabalado.
Mas ocorreu também por decisão. Com a saída de Lula e a candidatura frágil de Fernando Haddad, parecia haver a possibilidade de reorganização de forças na base do lulismo. Por muito tempo, Ciro apostou como sua base política uma aliança entre PDT, PSB e PC do B, ao invés de lutar por alianças ao centro. Além disso, atraiu também a simpatia do eleitorado do PT, então exausto com as sucessivas derrodas e com os recuos do partido diante dos avanços da extrema direita.
Como resultado, Ciro foi ambíguo durante toda a pré-campanha, tentando até o último momento um acordo de cavalheiros com o PT. Ciro não queria o apoio de Lula, mas o direito de concorrer dignamente com o apoio de parte da base lulista. Mas, com receio de perder sua hegemonia na esquerda, o PT submeteu o PCdoB na aliança e forçou a neutralidade do PSB, desperdiçando o tempo de TV e recursos do partido na disputa contra o bolsonarismo.
A resolução das negociações de coligações daquele ano foi decisiva para o futuro de Ciro. Limitado a uma bolha de centro-esquerda insatisfeita com o PT, Ciro não espumou antipetismo como os candidatos mais à direita, mas foi duro nas críticas ao modelo econômico e à corrupção do partido, impondo a ele sua responsabilidade pelo cenário político presente.
Com o final do primeiro turno, tomado por revolta e cansaço da disputa, Ciro viajou para fora do país, deixando sua máquina eleitoral funcionando a favor de Haddad contra Bolsonaro, mas recusando seu endosso simbólico ao candidato petista. As entrevistas seguintes à eleição reiteraram a nova disposição do político: a criação de um campo de oposição ao presidente que fosse autônomo à força eleitoral do petismo.
De 2018 para hoje, muito ocorreu. A despeito da execução da agenda de reformas há 5 anos, e de um momento de otimismo com o começo do governo Bolsonaro, a economia brasileira nunca deslanchou. Ao contrário, com a pandemia de coronavírus e o irracionalismo do presidente, o país mergulhou em uma crise econômica sem precedentes.
A competição geopolítica com a China e os ventos do Norte também começaram a apontar para uma mudança no mainstream econômico. A necessidade de superar a depressão econômica, herdada de 2008, mas acentuada na pandemia, gerou grandes pacotes de investimentos e a discussão de políticas industriais mais fortes em países como Alemanha, França, Inglaterra e Espanha. Joe Biden, eleito presidente dos EUA, apresentou um ousado pacote fiscal de US$ 6 trilhões, o maior da história americana.
Essa mudança também teve reflexos no Brasil. Rodrigo Maia, de centro-direita, foi o grande responsável pelo pacote de auxílio emergencial. João Dória, ultraliberal, se tornou um defensor da vacina e do Instituto Butantan, um órgão público. Luiz Mandetta, liberal de centro, se tornou um grande campeão do SUS, sistema público de saúde do país. O centro político, antes aderente à agenda de reformas e privatizações, pareceu mais hesitante em suas convicções.
Os impactos também chegaram no mundo empresarial. Guilherme Benchimol, CEO da XP Investimentos e estrela do novo mercado de investimentos do país, defendeu em uma entrevista em 2020 um novo Plano Marshall para que o país saísse da crise. Na mesma época, André Esteves, do BTG Pactual, criticou a política de juros relaxada aplicada pelo governo e apontou seus riscos para a precificação dos ativos, mas ressaltou o papel dos bancos públicos para a retomada do investimento.
De forma mais generalizada, representantes de peso do mercado como a Febraban e a Fiesp, aliada ao presidente, manifestaram posições fortes diante da política irracional do governo no combate à pandemia e na relação com os demais poderes. Por trás de tudo isso, uma mensagem de fundo: o establishment está exaurido com o discurso e a postura antissistema do governo. O país precisa de paz, equilíbrio, e de um novo consenso.
Aqui encontra-se o jogo político atual. A disputa entre petismo e antipetismo foi definida: de um lado está Bolsonaro, um antipetista radical, e de outro Lula, ex-presidente popular e principal aríete eleitoral do PT. Todos os demais candidatos acabaram entrando no bolo da terceira via, que tenta romper a polarização entre as duas correntes políticas radicalizadas.
Lula não é bobo, e tenta enquadrar a disputa entre democracia e fascismo, colocando-se, portanto, como candidato do establishment político. O empresariado não recusa o diálogo, porque sabe que o líder petista é muito diferente de sua sucessora, Dilma Rousseff, tanto no nível de ousadia de política econômica quanto na disposição ao diálogo.
Entretanto, o problema do mercado com Lula não é pessoal, mas político. O mercado sabe que Lula não será capaz de conter seu partido, muito ressentido com as derrotas políticas acumuladas desde 2015. A defesa da regulação da imprensa por Lula é evidência inequívoca disso. Além disso, sabe-se também que a eleição do líder petista não resolveria o conflito entre petismo e antipetismo. Ao contrário, é provável que sua vitória reviva com força essa disputa e reforce o polo da direita radical, inviabilizando a construção de um novo consenso.
Ciro definiu sua posição em relação ao petismo por imposição da realidade. O escape da órbita do PT foi doloroso, mas possibilitou a criação de uma corrente política de centro-esquerda autônoma ao PT. A despeito dos excessos e da retórica dura, é por este motivo, junto ao recall de 2018, que Ciro figura hoje como o candidato melhor posicionado na terceira via, com cerca de 10% do eleitorado.
Entretanto, Ciro não se decidiu ainda em relação à outra disputa motriz do cenário político: se é um candidato antissistema ou se é pró-sistema. Ou seja, se seu projeto representa uma mudança radical ou uma mudança segura para o país. Se sua candidatura visa a alteração profunda do sistema atual ou o diálogo para a criação de um consenso.
Por um lado, Ciro é o candidato cujo discurso, no conteúdo e na forma, demonstra desejar uma ruptura profunda. Ciro diz que a elite defende um modelo econômico fracassado, acusa os institutos de pesquisa de terem motivações inidôneas, aposta num conflito entre capital produtivo e financeiro. Sua militância disputa com o PT nas redes a legitimidade da verdadeira esquerda, e com o bolsonarismo o verdadeiro nacionalismo.
Por outro lado, Ciro é o candidato de esquerda que, desde 2018, aceita debater temas como ajuste fiscal, reforma da previdência, reforma no funcionalismo e eficiência do Estado. Por suas críticas ao petismo e ao bolsonarismo, bem como por um debate econômico mais racional, é convidado na GloboNews a debater com os demais candidatos de terceira via.
Mauro Benevides, ex-secretário de Finanças do Ceará, e um de seus expoentes econômicos, é a representação mais clara dessa mudança segura. O economista defendeu em entrevista ao Valor a manutenção do teto de gastos, tema caríssimo ao mercado, com reformas, excluindo o investimento público para permitir o relance da atividade econômica.
Defendeu também a privatização de estatais inoperantes, com a manutenção de empresas vistas como estratégicas, como Eletrobrás e Correios. Defendeu a manutenção do tripé macroeconômico, com um ajuste no cálculo do IPCA, retirando produtos indexados em dólar. Em suma, o economista defendeu mudanças e reformas, mas de forma racional, que não assusta o mercado e nem o establishment midiático e político-partidário do país.
A candidatura Ciro vai precisar fazer uma escolha difícil entre os dois caminhos. O primeiro pode fortalecer a base ideológica do candidato, facilitar a disputa com o PT na centro-esquerda num cenário de decadência do partido, e colocar Ciro na posição de herdar o voto indignado que hoje está com o bolsonarismo, mas que até agora não acusou um descolamento com o presidente.
O segundo caminho pode ajudar Ciro a ter a aceitação que precisa de mídia e empresariado, facilitar as alianças com os partidos de centro, e desarmar o eleitor não-politizado, que tem forte rejeição a radicalismos de qualquer natureza. Tais fatores seriam decisivos para construir um polo gravitacional no centro político, angariando as demais forças, e disputar para valer o pleito presidencial de 2022.
Acreditar que há uma separação entre capital produtivo e financeiro hoje é ilusão. Desde a financeirização dos anos 80 e 90, a cúpula do mundo empresarial navega com trânsito e coesão com os representantes do mundo financeiro. A carta conjunta de Febraban e Fiesp, contra a instabilidade política provocada pelo governo, é evidência concreta disso.
Apesar disso, o establishment nacional aponta que aceita discutir mudanças no modelo econômico atual, desde que haja alguma garantia de segurança. Ideias antes absurdas, como a taxação de lucros e dividendos, hoje entraram na ordem política das negociações do Congresso.
Resta saber se Ciro aceitará conversar com o establishment e se vai propor a cura para a longa ressaca de 2013, ou se apostará na construção de uma corrente política mais ideológica e militante de longo prazo. Num cenário em que a disputa política se opera na comunicação digital e segmentada, é provável que o candidato transite entre os dois mundos por algum tempo.
Por Maria Eva Angelim/Disparada
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